2022.

FESTIVAL RESCALDO DE 02 A 06 MARÇO 2022

O Festival Rescaldo está de regresso a Lisboa, com mais de dois anos de música aventureira nacional para celebrar, em quatro salas da cidade, e mostrar que, apesar da paragem forçada, o tecido criativo mais desafiador do país se mantém vivo e pulsante.

Fiel à sua identidade, o Rescaldo programa, a par de nomes históricos que ano após ano continuam a deixar bem vincada a sua idiossincrasia e absoluta contemporaneidade, criadores de múltiplas novas gerações em pleno percurso de afirmação e maturidade, bem como valores emergentes dos mais diversos espectros sonoros cujas marcas se têm feito sentir ao longo dos últimos meses.

Os doze concertos, e um dj Set, colocam em cena, para além da riqueza intergeracional, a diversidade de timbres, instrumentação e abordagens estilísticas em que a comunidade nacional é fértil; há espaço para a improvisação livre, para as eletrónicas modulares, para o jazz que resiste a deixar arrumar-se, para instrumentos tradicionais, para a imagem e o movimento em plano de igualdade com o som, para a formação clássica do rock. As propostas convidam à imersão tanto quanto à celebração; a intersecção, variação, ramificação e diálogo são necessidades incontornáveis. O Rescaldo é, como sempre foi, um espaço para outras formas de pensar e ouvir.

 


DAMAS – 02 MAR. 22


CARLOS “ZINGARO”

Carlos ‘Zíngaro’ – violino
Inês Oliveira – imagens

É impossível falar de música improvisada em Portugal sem falar de Carlos ‘Zíngaro’. No ano em que se completam 55 anos da formação do influente grupo Plexus, encontramos o violinista em plena forma e fulgor criativo – que aliás, sempre manteve ao longo destas cinco décadas nas quais, para além de aprofundar com um rigor metódico e expressivo a figura da atuação a solo, que acolheremos no Rescaldo, criou música em tempo real com uma lista de músicos (de Joëlle Léandre a Derek Bailey, de Anthony Braxton a Evan Parker) que, só por si, merecia um tratado. Não foi, no entanto, um tratado, mas sim um documentário, focado na vida e obra deste músico de excelência, que a realizadora Inês Oliveira se apresta a estrear na próxima edição do festival Indie Lisboa; e nesta ocasião especial que é a abertura do Rescaldo teremos o privilégio de ver excertos deste filme ao longo da atuação de Zíngaro, preparados pela própria cineasta.
Se o Rescaldo é a celebração da riqueza e diversidade da criação sonora portuguesa, seria literalmente impossível começar melhor esta nova edição.

CLOTHILDE

Sofia Mestre – sintetizadores modulares

Desde o lançamento de ‘Twitcher’, em 2018, que Clothilde, alias da colorista, desenhadora e muitas outras coisas Sofia Mestre, se tem fulgurantemente afirmado como arquiteta de algumas das mais belas aventuras sonoras criadas neste retângulo em muitos, muitos anos.
Uma relativa retardatária nestas coisas da música, a que chegou por via da exploração das bases eletrónicas modulares de construção caseira do lisboeta HOBO, o trabalho de Sofia Mestre traz consigo, muito para além da herança de figuras históricas e tutelares como Maryanne Amacher ou Eliane Radigue, uma bagagem profundamente pessoal e emocional difícil de encontrar por entre a plêiade de músicos que hoje em dia protagonizam a autêntica explosão de sintetizadores modulares que temos visto um pouco por toda a parte; há uma clareza, fluidez e elegância notáveis na forma como estrutura e erige as suas composições eletrónicas que nos suga inapelavelmente para uma escuta intensa, transformadora, mas exigente – como tudo o que realmente importa.
Após dois anos imersa na criação de bandas-sonoras para teatro e cinema (entre as quais ‘Os princípios do novo homem’, editada em 2020 pela Holuzam), traz ao Rescaldo uma atuação que problematiza o próprio tempo enquanto protagonista de uma banda sonora imaginária – para um filme que cada um de nós ajudará a criar enquanto ouvinte.

 


CCB – 03 MAR. 22


VASCO ALVES

Vasco Alves – gaita-de-foles, eletrónicas

O lisboeta Vasco Alves protagoniza, numa atuação curta, iniciática, espécie de chamamento para o que há de vir, um confronto entre a milenar gaita-de-foles e sons de origem eletrónica – dizemos “confronto” porque é o próprio músico quem batizou o seu penúltimo disco de ‘Gaita contra computador’, um exercício fascinante e parte de um corpo de obra em crescendo, com destaque também para ‘Estrada longa’, de 2021, disco-diário de uma viagem de bicicleta que atravessa Portugal de norte a sul. Aliando a dimensão performática a um espírito inquisitivo que quer descobrir, por si próprio e ao seu próprio ritmo, alguns modos de fazer que obrigam a atravessar a fronteira entre saber e ser, a proposta de Vasco Alves configura um colocar em cena da relação nem sempre simbiótica entre o sopro – literal e figurado – e a máquina. Um minimalismo agreste para o novo milénio, talvez?

O CARRO DE FOGO DE SEI MIGUEL

Fala Mariam – trombone alto / Nuno Torres – saxofone alto /| Bruno Silva – guitarra elétrica / Pedro Lourenço – baixo / André Gonçalves – eletrónicas / Luís Desirat e Raphael Soares – percussão / Sei Miguel – trompete de bolso, composição, arranjos e direção.

Músico que continua a soar, simultaneamente, à frente, atrás e ao lado do seu tempo, o trompetista Sei Miguel, cujas composições tão profundamente idiossincráticas e pessoais continuam, sem paradoxo, a materializar-se sempre através das vozes dos inúmeros músicos que com ele já trabalharam, não fez nunca segredo que a raiz da sua música, do seu jazz – e, portanto, do mundo – são os blues e o silêncio.
O seu Carro de Fogo é a formação alargada que, durante a última década, persegue aquela que, nas suas palavras, é a “composição genérica”, o “arquétipo”, o “espírito indizível de uma banda”; é, portanto, uma banda que se ocupa de criar a música de que uma banda se ocupa: uma orquestra que é o seu próprio objeto sonoro, em busca de uma peça que é toda a música. É uma entidade que persegue a ontologia do jazz cósmico de acordo com a micro-cosmologia do jazz tal como entendido por Sei Miguel – os fundamentos do blues como a chave que abre toda a música humana.
No tal mundo “ao lado” deste, o ‘Bitches Brew’ de Miles Davis talvez tivesse soado assim; neste em que estamos, a música do Carro de Fogo oferece pistas para chegar a um outro plano.

TODA MATÉRIA

Joana da Conceição – eletrónicas / Sara Graça – voz, eletrónicas / Maria Reis – percussão

Mais que uma banda no sentido tradicional, Toda Matéria é um grupo, moldável e modulador, elástico e mutante, que manifesta o som enquanto prática de partilha e iluminação, mas também enquanto forma e corpo – que vê, que escuta, que sente e cria.
Coletivo pluridisciplinar para quem cada apresentação é um microcosmo irrepetível e resulta de uma narrativa construída de raiz, as Toda Matéria trazem ao Rescaldo uma exploração do conceito de fenestração, conceito que na botânica está ligado a uma forma de sobrevivência através da condução e partilha de luz – o corpo da folha que se transforma, abrindo brechas para que outras folhas recebam a luz prosperem -, e que na acústica humana se manifesta em vibrações que conduzem a audição ao maior número possível de células. E o que é o fazer música se não a sobrevivência, a condução e a partilha desses sons que são dados e criados?

 


CCB – 04 MAR. 22


MÁ ESTRELA

Pedro Alves Sousa – Saxofone barítono, eletrónicas / Bruno Silva – eletrónicas / Simão Simões – eletrónicas / Rui Dâmaso – baixo eléctrico / João Portalegre – bateria, eletrónicas.

No concerto que marca o lançamento do primeiro disco desta Má Estrela, Pedro Alves Sousa, saxofonista e um dos nomes que tem feito os jazzes portugueses deste novo século, faz-se rodear de músicos do lado de fora do jazz tal como o entendemos, cúmplices de várias outras andanças, para nos apresentar uma criação de híbridos e heterogenias sónicas.
Tal como outra das formações alargadas que este ano se apresenta no Rescaldo – o Carro de Fogo de Sei Miguel -, a Má Estrela enceta e conduz um diálogo entre silêncios e entre um entendimento de um género específico, neste caso o dub, que na direção de Pedro Alves Sousa é feito de linhagens várias das eletrónicas contemporâneas: sejam aquelas em que assenta a canção pós-soul dos dias de hoje, seja o footwork e outras músicas da dança, sejam as incursões letárgicas e hipnóticas da música ambiente. O resultado final é uma suspensão beatífica, ou um regresso ao solo das voltagens em busca de asas para levitar.

MÁQUINA MAGNÉTICA

Gustavo Costa: percussão / Miguel Carvalhais: computador / Pedro Tudela: computador / Rodrigo Carvalho: visuais

A Máquina Magnética é um encontro feliz entre Pedro Tudela e Miguel Carvalhais (os @c, duo de música eletrónica com percurso criativo fundamental de décadas em Portugal), o baterista e percussionista Gustavo Costa (membro de incontáveis projetos e um dos nomes omnipresentes nos desenvolvimentos mais experimentais vindos da cidade do Porto desde o início do século) e o artista intermédia Rodrigo Carvalho.
Numa performance que assenta na criação paciente de um espaço sonoro e visual próprio, a plasticidade imersiva das referências sónicas e dos métodos de composição remete-nos para uma história condensada dos caminhos da música concreta, da síntese digital, do minimalismo de câmara ou da escultura sonora, compondo uma ode – conduzida com detalhe e tacto invulgares – aos caminhos do Som, como num momento zero em que a Música e o seu contexto de apresentação se redescobrem enquanto possibilidade infinita.

 


ZDB – 05 MAR. 22


ONDA XOQUE

Curiosidade extra quando propomos um concerto cujos protagonistas preferem o anonimato – será uma vantagem ou desvantagem dos programadores face ao público? -, mas também e sobretudo quando desse concerto podemos esperar um diálogo lúdico fascinante entre amigos, sentados em volta de sintetizadores modulares de fabrico artesanal, teias de fios e cabos espalhados como redes de pesca, combinações e percursos voltaicos decididos no momento. Tomando emprestadas as palavras do “nosso” João Castro: “eletrónica Escher”, ou um jogo de xadrez – ou de mais prosaicas damas – “sem vitória nem derrota”.

MEDUSA UNIT

Álvaro Rosso: contrabaixo – André Hencleeday: piano – João Almeida: trompete – Ricardo Jacinto: violoncelo, composição – Nuno Morão: percussão

A Medusa Unit é um ensemble de formação variável que tem vindo, nos últimos anos, a dar corpo sonoro às composições do notável violoncelista Ricardo Jacinto, músico que tem vindo com assinalável mestria – e nos seus diversos projetos – a fundir as tantas vezes ténues fronteiras entre composição e expressão livre no momento, e entre acusticidade e amplificação.
Neste Rescaldo apresenta-se, pela primeira vez, nova composição, de título ‘Hino a Caríbdis’, na qual Jacinto se faz acompanhar do contrabaixo de Álvaro Rosso, do Piano de André Hencleeday, da trompete de João Almeida e da percussão de Nuno Morão; uma peça que se insere num continuum composicional que se faz valer das possibilidades híbridas dos instrumentos, numa dinâmica de simultâneo reconhecimento e afastamento tímbrico, que utiliza as suas propriedades-base em conjunção com engenhosas estratégias de micro-amplificação e de interferências de sinal. Um jogo entre fontes sonoras e espaço de escuta, uma música de múltiplas texturas que evoca escolas como o minimalismo ou o espectralismo, mas que se sente como corpo vivo e nunca petrificado.

HETTA

Alexandre Domingos: voz – João Portalegre: bateria – João Pires: guitarra – Simão Simões: baixo

De uma das margens afastadas da Margem Sul – falamos do Montijo – o quarteto Hetta traz a este Rescaldo a adoração do volume por vias da clássica formação rock: bateria, guitarra, baixo e voz. Mas é longe de clássica esta música, que remete para diferentes iterações do prefixo “pós” e resiste a definir-se numa corrente de fácil arrumação; o sentimento de abandono e entrega é notório, a violência contida da pausa e arranque perpétuos faz-se sentir como descarga que é, alternadamente, âncora e nuvem. Ou ainda, imagine-se um tempo e espaços alternativos em que o Montijo triangula com a Nova Iorque do princípio do milénio e Tóquio do seu final.

RODRIGO AMADO & TÓ TRIPS DJ SET

Correndo o risco sempre presente da hipérbole, duvidamos que nos últimos anos alguém se tenha lembrado de um dj-set mais improvável e simultaneamente óbvio que este: improvável porque os universos musicais do saxofonista Rodrigo Amado e do guitarrista Tó Trips não parece tocar-se; óbvio, porque basta que olhemos para estes dois nomes na mesma linha para nos apercebermos de que tanta da música mais interessante feita no país nas últimas três décadas tem o cunho destes senhores – e isto tem que querer dizer qualquer coisa, que talvez venhamos a intuir durante esta noite.

 


ST. GEORGE CHURCH – 06 MAR. 22


BANHA DA COBRA

Mestre André: electrónicas
Carlos Godinho: percussão

A Banha da Cobra, projecto dos músicos Mestre André e Carlos Godinho, é, nas palavras dos próprios, “um fluxo de investigação e intervenção sonora”, descrição certeira que aponta para o particular espírito desta formação alquímica e intuitiva, que faz de cada momento de apresentação um novo passo numa metodologia que se ocupa, primeiro que tudo, do fascínio pelas coisas do mundo.
Compondo, em tempo real, a partir de bases mínimas, como sejam os objetos percussivos de Carlos Godinho e algumas gravações de campo feitas por Mestre André, a música do duo parece espelhar a reconstrução criativa de uma ruína – não necessariamente reproduzindo o modelo-base, mas estudando as suas possibilidades e formas alternativas, as direções que poderia ter tomado, as condições de permanência da sua transiência, as suas formas de sustentação e a forma como o seu passado se transforma num presente absoluto antes de voltar a ser memória.

PEDRO CARNEIRO

Pedro Carneiro: marimba

Percussionista e virtuoso da marimba, Pedro Carneiro é também um compositor, instrumentista e chefe de orquestra cujo trabalho pode ser encontrado em mais de uma centena de obras. O seu trajeto nos caminhos da música clássica e contemporânea é vastíssimo e amplamente reconhecido, tendo a sua faceta de compositor vindo também a ganhar preponderância. No Rescaldo colocaremos em cena ainda uma outra face deste essencial músico português, a de improvisador – e repare-se como é perfeito este círculo que vai traçar-se com o diálogo entre a marimba e o vasto espaço ressonante da St. George’s Church: saiu, há pouquíssimos meses, o disco ‘Elogio das Sombras’, que resgata uma sessão de improvisação livre ocorrida há dez anos entre Carneiro e, nada mais nada menos, que Carlos ‘Zíngaro’, a quem cabem as honras de abertura desta edição o festival. Os caminhos da música aventureira portuguesa são assim, plenos de encontros, ramificações e aversões a zonas de conforto; o espírito livre far-se-á sentir na sua plenitude, ainda e sempre.